Por Prof. Fabrício Moreira, Professor de Farmacologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) fabriciomoreira@icb.ufmg.br

Maconha, Cannabis sativa. Nenhuma planta desperta tanto interesse, discussão, polêmica e controvérsia quanto esta. Extensamente utilizada para fins recreacionais, seus efeitos são bem conhecidos, descritos, registrados, publicados: Quando fumada ou ingerida, ocasiona sensação de relaxamento, bem-estar, perda de coordenação motora e memória, fome. Sua importância, porém, vai muito além de seu uso como droga de abuso. A maconha é proposta, há séculos, como possível medicamento para diversas doenças de natureza neurológica e psiquiátrica.

Embora venha sendo utilizada por tanto tempo, é impressionante o quanto o conhecimento em torno dela ainda é recente! Os primeiros estudos em laboratório com esta planta só foram realizados na década de 1960. E foram determinantes para compreendermos o que realmente é a maconha e como ela funciona. O Professor Raphael Mechoulam, em Israel, identificou a principal substância química responsável pelos seus efeitos, sendo esta o delta-9-tetrahidrocanabinol (THC). Outros componentes também foram identificados na maconha, sendo o de maior destaque o canabidiol (CBD). Em conjunto, estas substâncias são chamadas de fitocanabinoides (“canabinoides da planta”).

É fascinante que, duas décadas depois, estudos de laboratório também tenham descoberto que nossas células possuem uma estrutura específica para o THC se ligar e agir. É como uma “fechadura” na membrana das células que, quando acionada pela “chave” (o THC), modifica as propriedades do cérebro. O próprio corpo, aliás, tem “cópias” dessa chave: São os endocanabinoides, substâncias químicas parecidas com o THC, que são produzidas por nossas próprias células e que também se encaixam nessa “fechadura” (que a ciência chama de receptor canabinoide). O receptor canabinoide (a “fechadura”), os compostos produzidos pelo cérebro, denominados endocanabinoides (as “chaves”,) e as enzimas relacionadas constituem um sistema químico do corpo chamado de Sistema Endocanabinoide.

Quanto às perspectivas terapêuticas, as abordagens experimentais têm aberto diversas possibilidades interessantes, principalmente com o CBD. Já nas décadas de 70 e 80, o Prof. Elizaldo Carlini, um pesquisador pioneiro e ainda em atividade, identificou que o CBD era capaz de reduzir crises epilépticas em animais de laboratório. Estes estudos, porém, não foram continuados devido à dificuldade de se obter um composto oriundo de uma planta proibida e “demonizada”! Interessante notar que, mais recentemente, tem surgido um grande interesse por estes estudos. Novas pesquisas de laboratório têm mostrado os efeitos antiepilépticos do CBD, bem como sua segurança, pelo menos em curto prazo, inclusive por nosso grupo de pesquisa na UFMG. Além disso, estudos clínicos têm observado sua eficácia em pacientes com epilepsias refratárias, ou seja, que não são bem tratadas com os medicamentos convencionais.

Além do seu uso para o tratamento das epilepsias, o CBD vem sendo extensamente investigado para o tratamento da esquizofrenia, um dos mais debilitantes transtornos psiquiátricos. Diversos grupos de pesquisa, particularmente da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, têm se dedicado a este trabalho. Também neste caso, o conhecimento gerado por estes experimentos em animais de laboratório foi aplicado, com sucesso, em pacientes: Ensaios clínicos têm revelado a eficácia do CBD no tratamento de pacientes com esquizofrenia. Porém, assim como no tratamento de epilepsias, mais estudos são necessários, tanto experimentais quanto clínicos.

O CBD, portanto, pode ser uma excelente abordagem terapêutica em doenças neurológicas e psiquiátricas. A ilustração abaixo mostra uma comparação dos efeitos do CBD puro com os da maconha, apontando usos e limitações de cada um.

Fig. 1: Possíveis vantagens e limitações dos usos terapêuticos da maconha e do CBD

Fig. 1: Possíveis vantagens e limitações dos usos terapêuticos da maconha e do CBD

Além do CBD, outra abordagem merece especial atenção: O desenvolvimento de medicamentos que atuam sobre o sistema endocanabinoide. Conforme explicado acima, o cérebro produz substâncias químicas parecidas com o THC, dentre as quais uma das mais estudadas chama-se anandamida. Diversos estudos mostram que ela atua como guardiã do cérebro, protegendo-o contra estímulos que possam causar danos aos neurônios. Isso abre perspectivas para o desenvolvimento de medicamentos que atuem aumentando os níveis de endocanabinoides no cérebro.

Alguns grupos de pesquisa, inclusive o nosso na UFMG, mostraram que compostos químicos capazes de aumentar a quantidade de anandamida no cérebro protegem animais de laboratório contra crises epilépticas, um efeito semelhante ao do CBD. Portanto, esta pode ser uma estratégia para se desenvolver novos medicamentos para tratar epilepsias. Mostramos, também, que esses compostos protegem o cérebro contra efeitos tóxicos da cocaína, uma das drogas de abuso mais perigosas e extensamente utilizada no Brasil.

Os endocanabinoides são produzidos em baixa quantidade no corpo, mas sua produção aumenta em resposta a estímulos que podem causar dano. Essa propriedade é de grande interesse por levar ao possível desenvolvimento de medicamentos que atuam sob demanda, com menos efeitos adversos. Portanto, compostos que aumentam os níveis de endocanabinoides no cérebro podem servir como medicamentos para o tratamento de certos tipos de dor e de transtornos psiquiátricos, tais como ansiedade e depressão.

A ilustração abaixo explica as diferenças entra as ações do THC e dos endocanabinoides.

Fig. 2: Propriedades do THC, principal canabinoide produzido pela planta, e dos endocanabinoides, que são produzidos pelo corpo.

Fig. 2: Propriedades do THC, principal canabinoide produzido pela planta, e dos endocanabinoides, que são produzidos pelo corpo.

Batista, L. A.; Gobira, P.; Moreira, F.A. Aspecto dual da maconha na ansiedade e no humor. Revista da Biologia, 2014, v. 13, p. 36-42. [Artigo]

Carlini, E. A história da maconha no Brasil. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 2006, v. 55, p. 314-317. [Artigo]

Khoury, J. M. ; Roque, M.A.V ; Alves, D. ; Moreira, F.A. ; Garcia, F. D. . Canabidiol em Psiquiatria. In: Antonio Egidio Nardi; Antônio Geraldo da Silva; João Luciano de Quevedo. (Org.). Programa de Atualização em Psiquiatria. 5ed.Porto Alegre: Artmed Panamericana, 2016, v. 4, p. 9-174.