Registros arqueológicos de 2737 AC comprovam o uso de um chá de cannabis, utilizado e recomendado por um imperador chinês, para tratamento da gota, reumatismo, malária e, por incrível que pareça, memória fraca. Entre os séculos I e XVIII, na principal publicação relacionada às drogas medicinais, conhecida como “De materia medica” de Dioscórides, pai da farmacologia moderna, a maconha figurava com um potente analgésico e anti-inflamatório. O uso medicinal se disseminou a partir da Ásia, passando pela África, Europa e América.

Além dos efeitos medicinais, a utilização da cannabis para produção de fibras têxteis, permitiu a expansão do imperialismo através da confecção de cordas e velas, imprescindíveis para navegação transatlântica. Com o passar dos anos, a fibra do cânhamo passou a competir com a indústria do algodão e, ao mesmo tempo, expandia-se o uso recreativo e religioso por minorias afrodescendentes e indígenas, populações alvo de intensa discriminação racial que perdura até hoje.

Neste cenário, o proibicionismo imposto por vários governos, baseado em preconceitos sociais e interesses econômicos, colocou a cannabis na lista de “drogas abomináveis”. A equivocada proibição, referendada pela ONU em 1961, desencadeou a politica internacional de “Guerra as Drogas” fundamentada em parâmetros nada científicos. Com isso, o efeito medicinal permanece desconhecido pela maioria das pessoas. Tanto cientistas quanto pacientes têm o acesso a cannabis, arbitrariamente, suprimido em muitos países no mundo, inclusive no Brasil.

O prevalente proibicionismo mundial prejudica o desenvolvimento de estudos clínicos controlados, mesmo assim, a cannabis insiste em instigar interesses científicos.

Nos anos 90, a identificação dos receptores canabinoides de membrana celular, CB1 e CB2, nas células nervosas, imunitárias e neoplásicas, e os endocanabinoides consolidam o “Sistema Endocanabinoide” e abre as portas para a ciência como um novo potencial alvo terapêutico ainda pouco conhecido e estudado. A complexidade e o potencial terapêutico deste sistema, que envolve substancias agonistas e antagonistas nos receptores específicos, estabelecem a necessidade de um conhecimento especializado que se constitui na base da medicina canábica.

Na contramão do proibicionismo, e com total protagonismo da sociedade civil organizada, “ilhas de regulamentação” começam a se estabelecer na América do Norte, Europa e recentemente no Uruguai e no Chile. Pacientes portadores de doenças incapacitantes, beneficiados pelo uso medicinal, resolveram romper o silêncio em várias partes do mundo. Hoje, os benefícios alcançados no controle de crises convulsivas, dores neuropáticas, doenças degenerativas, autoimunes, e alguns casos de câncer, passaram a ser divulgados pela imprensa trazendo a cannabis para discussão aberta com toda a sociedade. Os bons resultados, aliados à segurança do uso contínuo, obtidos por estes pacientes, contribuem para uma mudança de visão que inverte o preconceito arraigado em relação à maconha.

Por outro lado, os terríveis danos sociais decorrentes da “Política de Guerra às Drogas”, contribuem para um verdadeiro genocídio de negros e pobres, integrantes da população desassistida pelo Estado, além de perpetuar a criminalidade e favorecer a indústria bélica e seus acionistas. Segundo Júlio Waiselfisz, em Mapa da Violência 2016, de 1980 até 2014 morreram, assassinadas por arma de fogo, perto de 1.000.000 de brasileiros. O número destes homicídios cresceu absurdos 592,8%, no mesmo período a população cresceu 65%. O crescimento dos assassinatos foi nove vezes maior que o crescimento populacional, proporcionalmente.  A maioria destas mortes está relacionada ao trafico de drogas. É preciso ter consciência que em nenhum lugar do mundo a repressão conteve o consumo. A saída está numa mudança de paradigma, é preciso regulamentar o uso de drogas, educar e orientar sobre os possíveis danos e tratar as pessoas que tem problemas com o uso abusivo. Trata-se de uma questão de saúde pública que deve ser abordada dentro de diretrizes do SUS e não de forma repressora e policialesca na esfera da segurança pública.

A legislação precisa evoluir. A sugestão legislativa de origem popular SUG 8, cujo relator é o Senador Cristovam Buarque, encontra-se sem movimentação no Congresso Nacional desde 02 de setembro do ano passado quando teve o parecer aprovado na comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. Este Projeto de Lei  visa a regulamentação do uso recreativo, medicinal e industrial da maconha.

A proibição da maconha determina a limitação de estudos clínicos para desenvolvimento de protocolos de tratamento, herbáceo ou farmacológico, mais adequado para cada doença de origem neurológica, psiquiátrica, autoimune e oncológica. Questões sociais, proibicionistas ou não, conceitos e pré-conceitos, não podem estar acima do alívio para o sofrimento. Existem inúmeras maneiras de se beneficiar com cannabis medicinal, desde a forma “in natura”, obtidas a partir de espécies distintas, até preparações farmacológicas elaboradas. Para casos específicos, orientação médica é fundamental. Por outro lado, uma série de condições patológicas podem ser, autonomamente, controladas por uso fumado, vaporizado, aplicado ou ingerido de uma erva produzida pelo próprio paciente em um cultivo doméstico que, além de garantir qualidade de origem, não expõe o doente à violência do tráfico.

A terapia com cannabis e seus canabinoides encontra-se em fase incipiente de estudos científicos e não deve ser escolhida como terapia exclusiva em substituição às terapias já estabelecidas cientificamente para os casos mais graves incluindo câncer e doenças degenerativas. O tratamento canábico pode se constituir numa terapia adjuvante, complementar ao tratamento médico tradicional, trazendo benefícios para muitos pacientes.

O site da Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal (AMA+ME) pretende ser um canal de informação entre a ciência e a sociedade, contribuindo na divulgação de conhecimento científico relacionado ao potencial terapêutico da planta, discutindo abertamente a questão da cannabis, os impactos da sua regulamentação na saúde e na segurança pública, proporcionando qualidade de vida para os usuários medicinais e contribuindo para a redução da violência. O site abre suas portas para que a academia brasileira divulgue suas pesquisas para além do meio científico, valorizando e promovendo a vida, sempre. Do mesmo modo esperamos que os todos os interessados possam participar, comentar, sugerir e divulgar nosso conteúdo.

Para o futuro, a AMA+ME continuará acolhendo pacientes, atuando em prol regulamentação, promovendo estudos observacionais entre seus associados e fomentando pesquisas acadêmicas no país. Nossa meta é produzir, para nosso grupo de associados pacientes, cannabis e seus subprodutos destinados ao consumo medicinal e científico, respeitando padrões de qualidade, controle quantitativo e qualitativo de canabinoides, sustentabilidade e respeito ao meio ambiente.

Leandro Ramires
Presidente da AMA+ME