À medida que mais pesquisas indicam a eficácia e a segurança de canabinoides para o controle de sintomas e a melhora do quadro de saúde de pacientes com diferentes diagnósticos, cresce a demanda por esses produtos.

💊Somente nos três primeiros meses deste ano, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) emitiu 27.687 autorizações para importação de produtos à base de cannabis no país, 83% a mais do que no mesmo período de 2022.

💊Nas farmácias, as vendas cresceram 201% na mesma comparação, com a comercialização de 193 mil unidades, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Canabinoides (Br Cann).

Mas o alto custo desses produtos – a maioria deles, importados – dificulta o acesso. Pacientes esperam que, caso o Supremo Tribunal Federal (STF) decida pela descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal, o cultivo de determinada quantidade da planta seja liberado e eles consigam, em algumas situações, ter acesso ao tratamento por conta própria.

“A descriminalização permitiria que pessoas que desejam se cuidar com produtos de cannabis fizessem isso com segurança e cultivassem determinada quantidade de uma planta que melhora sensivelmente a qualidade de vida delas ou dos filhos”, afirmou o psicólogo da Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal (AMA+ME), Anderson Matos.

 

A retomada do julgamento está prevista para o dia 21 de junho. A análise começou em 2015, quando três ministros votaram pela descriminalização do porte para uso pessoal — ao menos da maconha. O ministro Luís Roberto Barroso propôs a liberação do cultivo de até seis plantas cannabis fêmeas.

Busca pela oferta no SUS

No entanto, para associações e pacientes, uma eventual decisão do STF não seria suficiente. Eles defendem a regulamentação legislativa e a oferta de medicamentos à base de cannabis pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Vários projetos de lei sobre o assunto tramitam no Congresso Nacional, como o 89/2023, do senador Paulo Paim (PT/RS), que institui uma política nacional de fornecimento gratuito de canabinoides por meio do SUS, e o 399/2015, de autoria do ex-deputado Sergipe Fábio Mitidieri (PSD-SE), que legaliza o cultivo de cannabis para fins medicinais.

Atualmente, o plantio de maconha é proibido no Brasil, independentemente da finalidade. Há no país 26 produtos e um medicamento à base de cannabis autorizados pela Anvisa. Entenda a diferença:

🌱medicamento: passa por estudos clínicos com pessoas para a comprovação de eficácia e segurança e tem processo de registro mais complexo.

🌱produto de cannabis: não precisa passar por estudos clínicos para a comprovação de eficácia e segurança, mas é necessário que o fabricante seja produtor de medicamentos.

O único medicamento à base de cannabis aprovado no país é fabricado no Reino Unido e destinado ao tratamento sintomático da espasticidade (contração involuntária dos músculos e espasmos) moderada a grave relacionada à esclerose múltipla. Já entre os 26 produtos autorizados, dois são fabricados no Brasil.

Tanto o medicamento quanto os produtos podem ser comprados em farmácias mediante prescrição médica. Os pacientes também podem importar – neste caso, além da prescrição, é necessário autorização da Anvisa.

O número de autorizações cresce a cada ano:

💊Em 2015, quando a importação de produtos de cannabis foi regulada no Brasil, foram 850.

💊No ano passado, 80.258 autorizações foram emitidas pela Anvisa, um aumento de 9.342% em oito anos.

Histórico de autorizações para importação de produtos à base de cannabis
Número cresce a cada ano
Autorizações para importação8508508728722.1012.1013.5173.5178.5228.52217.78117.78140.16540.16580.25880.25820152016201720182019202020212022020k40k60k80k100k
Fonte: Anvisa

Alívio

Professora e teóloga Solange Maria do Carmo faz uso de medicação à base de cannabis — Foto: Arquivo pessoal

Professora e teóloga Solange Maria do Carmo faz uso de medicação à base de cannabis — Foto: Arquivo pessoal

A professora e teóloga Solange Maria do Carmo, de 59 anos, compra produto à base de cannabis para tratamento médico por meio de uma associação. No caso dela, a planta ajudou a eliminar as dores no corpo e trouxe o sono de volta.

“Eu já tinha parado no hospital algumas vezes com dor no corpo, e a cannabis me ajudou demais. Meu sonho é que vá para o SUS para que todo mundo tenha acesso. Ainda tem muito preconceito envolvido e jogo de interesses”, disse.

 

A professora Elisabeth Primo, de 47 anos, faz uso de cannabis para fins medicinais desde 2017, também por meio de associação. Ela sofre de dor crônica no corpo e ansiedade.

“Eu me sinto privilegiada por poder ter esse medicamento à minha disposição, tenho um alívio muito grande para a minha dor. O ideal seria nosso SUS fornecer esses produtos”, afirmou.

 

Judicialização

A burocracia e o custo elevado levam muitas pessoas a buscar a Justiça para ter acesso gratuito a canabinoides. Em 2018, a Defensoria Pública da União (DPU) registrou 30 pedidos. No ano passado, foram 274.

Para o defensor público federal em Belo Horizonte Luiz Henrique Gomes de Almeida, membro do Grupo de Trabalho Saúde da DPU, a inclusão de medicamentos com eficácia e segurança comprovadas no SUS poderia democratizar o acesso a tratamentos com cannabis.

“Ou a pessoa tem condições financeiras, o que é uma minoria, ou depende da judicialização da saúde. É uma via válida, a gente está aqui para isso mesmo, mas é um processo muito burocrático, tem toda uma angústia de um processo judicial e um custo envolvido, movimentando toda a máquina da Justiça para tratar disso”, afirmou o defensor público.

Em São Paulo, em janeiro deste ano, foi sancionada uma lei que institui a política estadual de fornecimento gratuito de medicamentos à base de cannabis. A princípio, os produtos serão disponibilizados para pacientes diagnosticados com síndrome de Dravet, síndrome de Lennox-Gastaut e esclerose tuberosa. Segundo a Secretaria de Estado de Saúde de SP, a previsão é que, dentro de três meses, a medicação esteja disponível na rede estadual do SUS.

O governo do Tocantins também instituiu uma política semelhante. Em Minas Gerais, o PL 389/2023, da deputada Andréia de Jesus (PT), foi protocolado na Assembleia Legislativa com o mesmo objetivo, mas ainda não foi analisado.

Saúde

Os benefícios já são comprovados para muitas condições de saúde. Em abril deste ano, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) publicou uma nota técnica em que destaca, com base em literatura científica, a segurança e eficácia de canabinoides na redução de sintomas e melhora do quadro em casos de dor crônica, epilepsia refratária, espasticidade, náuseas ligadas à quimioterapia e transtornos neuropsiquiátricos.

A nota ressalta também que a potencial eficácia do uso terapêutico de produtos à base de cannabis vem sendo pesquisada para dezenas de outras condições, como sintomas associados ao Transtorno do Espectro Autista (TEA), esclerose lateral amiotrófica, demência e glaucoma.

O Programa Institucional de Política de Drogas, Direitos Humanos e Saúde Mental da Fiocruz defende o acesso gratuito e universal, por meio do SUS, a formas farmacêuticas da cannabis.

“É necessário avançar na regulação dos produtos à base de cannabis, para que sejam produzidos nacionalmente e distribuídos de forma segura e eficaz. Por fim, também é necessário ampliar o acesso dos pacientes a estes tratamentos”, diz um trecho da nota.

Encarceramento

Além dos impactos para pacientes que fazem uso medicinal da maconha, uma eventual decisão do STF pela descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal poderia reduzir o encarceramento no Brasil.

📌Atualmente, o porte de drogas para uso pessoal é crime, embora não seja punível com prisão. A legislação brasileira, no entanto, não estabelece parâmetros para diferenciar consumo pessoal de tráfico de drogas, com pena de até 15 anos de reclusão.

📌Estudos indicam que a atual Lei de Drogas, sancionada em 2006, contribuiu para o aumento da população carcerária.

📌Em 2005, antes da nova legislação, havia 296.919 pessoas presas no país, 14% delas por crimes relacionados ao tráfico, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen).

📌Já em dezembro de 2022, o Brasil tinha 832.295 pessoas privadas de liberdade, 24% delas por crimes relacionados ao tráfico, de acordo com os dados mais recentes da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen).

📌Entre os presos custodiados no sistema penitenciário com informação de cor/raça disponível, 68,2% são pretos ou pardos.

“A descriminalização contribuiria para a redução do número de pessoas encarceradas, passando por situações absurdas de violência. Isso sempre deveria ter sido objeto de saúde pública, nunca de justiça penal”, afirmou Anderson Matos, do AMA+ME.