Leandro Ramires
Diretor médico-científico da Associação Brasileira de
Pacientes de Cannabis Medicinal (AMA+ME)
Os quase 10 anos de luta para que brasileiros pudessem ter acesso a tratamentos à base de cannabis medicinal nos permitem fazer uma leitura sobre como a sociedade civil tem se organizado e alcançado importantes resultados em favor dos que sofrem. O movimento que hoje atende mais de 68 mil pacientes no país começou em 2014, com os primeiros casos de autorização de uso da cannabis no Brasil.
Sem amparo na legislação, as famílias recorreram ao Poder Judiciário e ao contrabando (considerado por alguns como tráfico internacional de drogas) para obter acesso à cannabis. A pressão levou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a estabelecer algumas regras rigorosas, que dificultam o acesso do paciente ao tratamento. No Poder Legislativo, a luta enfrenta ideologias conservadoras e preconceituosas, o que tem impedido uma regulamentação mínima para atender às necessidades dos pacientes.
O Conselho Federal de Medicina (CFM), na mesma linha do parlamento, contradiz diversos órgãos internacionais, como a Organização Mundial de Saúde (OMS), que reclassificou a cannabis em 2020. O CFM impõe restrições à prescrição dos produtos de cannabis, limitando-a apenas a neurologistas e psiquiatras, e condena o uso do THC, o principal componente ativo da planta.
Nesse cenário, surgiu no país um movimento associativo movido pela dor, que busca superar esses obstáculos. Em dezembro de 2014, nasceu a pioneira Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal (AMA ME). Com o amadurecimento, em situação de desobediência civil, houve uma regionalização e multiplicação dessas associações de pacientes pelo país. Muitas delas oferecem atendimento jurídico, social e terapêutico complementar com psicologia, fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia e nutrição, como um retorno para a sociedade.
Em pesquisa feita com as associações recolhemos dados de 17 delas, que revelam a robustez do suporte prestado no país. São 68.345 pacientes associados, com idades variando de poucos meses a 101 anos, com uma mediana superior a 45 anos. Cerca de 60% desses pacientes são mulheres, portadoras de várias doenças, seguindo uma tendência mundial. Os diagnósticos atendidos se enquadram em grupos como transtornos mentais e comportamentais (18,1%), epilepsia e autismo (14,2%), dor crônica (11,4%), Alzheimer e outras demências (6,6%), câncer (6,0%), Parkinson e outros distúrbios do movimento (5,5%), fibromialgia (5,32%), artrites e artroses (2,7%), e outras doenças (30,2%). Para esses pacientes, uma média de 12 mil frascos de óleo de cannabis medicinal e integral é disponibilizada mensalmente.
Até o fim do primeiro trimestre deste ano, a Anvisa concedeu 181.753 autorizações individuais para importação de produtos de cannabis. No entanto, os valores mensais médios de cada tratamento ultrapassam R$ 1.500, o que torna o custo proibitivo para a maioria da população. Como alternativa, os pacientes recorrem às associações, que já atendem um número de quase 40% dos que importam, oferecendo acesso mais barato, ágil e, muitas vezes, com resultados superiores devido à maior concentração de THC.
As associações têm, ainda, conseguido participar e patrocinar pesquisas clínicas publicadas em revistas médico científicas de grande impacto internacional. Um exemplo notável é o Estudo Duplo Cego para o tratamento da fibromialgia, publicado em outubro de 2020 na revista “Pain Medicine”, que analisou o óleo medicinal integral rico em THC produzido pela AMA ME e tem ganhado reconhecimento internacional pela sua relevância clínica.
Independentemente do surgimento de novos projetos de lei nas assembleias legislativas estaduais, a regulamentação em nível federal é constitucionalmente preponderante. Novas perspectivas surgem com o novo governo federal e parlamento eleitos em 2022, a interlocução com a sociedade civil organizada, que anseia por uma regulamentação favorável ganha força, mas ainda está longe de se tornar uma realidade.

Artigo originalmente publicado em Estado de Minas Opinião